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 As duas faces da mesma moeda

XXXI Domingo Comum – Ano B | Mc 12, 28b-34



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“Nobunaga, grande samurai japonês, decidiu atacar o inimigo. Estacou e disse: ‘Lançarei uma moeda. Se calhar cara venceremos; se calhar coroa perderemos. Estamos nas mãos do destino.’ Calhou cara e os seus soldados venceram a batalha. ‘Ninguém pode mudar o destino.’ Confirmou o seu escudeiro. ‘Na verdade, não’ – respondeu Nobunaga – mostrando-lhe a moeda que lançara… tinha cara nas duas faces.”https://humbertins.wordpress.com/2024/11/03/as-duas-faces-da-mesma-moeda/#_ftn1




Já antes, no evangelho de Marcos, Jesus lidou com a questão dos mandamentos. Um fulano qualquer veio ter com ele e lhe disse: “Mestre que preciso fazer para entrar na vida?” E Jesus perguntou-lhe: “Conheces os mandamentos?” E continuou elencando-os: “Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não defraudes, honra teu pai e tua mãe.” (Mc 10,19).



E hoje veio ter com ele um escriba e perguntou-lhe qual é “o” mandamento. E Jesus apresentou-lhe dois, como se fossem as duas faces de uma mesma moeda. Porém, dá ideia que Jesus falou de um mandamento – amar a Deus – para chegar a um outro mandamento – e ao próximo como a ti mesmo, a ponto de a moeda, afinal, ter duas faces com a mesma imagem – amar o próximo!



Qual é o maior mandamento de todos? Ajuda-nos a regressar ao simples, ao princípio de tudo… A resposta começa com um verbo: amareis, no futuro, indicando uma história infinita, porque o amor é o futuro do mundo, porque sem amor não há futuro: amar-vos-eis uns aos outros, senão destruir-vos-eis. Ama a Deus e não ama os outros e destruir-vos-eis. Porque a balança em que se pesa a felicidade nesta vida é dar e receber amor. E não a Deus. Porque a Deus nunca ninguém o viu!



Amarás com todo o teu coração. Como se dissesse: com o vosso coração de luz e com o vosso coração de sombra, amar com o coração que crê e também com o coração que duvida; como puderdes, talvez com a vossa respiração, quando o sol brilha e quando escurece, e com os vossos olhos fechados quando tendes um pouco de medo, mesmo com lágrimas. Santa Teresa de Ávila, numa visão, recebeu esta confiança do Senhor: “Por uma pessoa que te ama, eu faria o universo de novo.” Estão a ver… tem pouco a ver com Deus… tem muito a ver connosco… Porque o nosso Deus é um Deus excêntrico…



Amar e conhecer Deus… palavras repetidas pelos místicos de todas as religiões, pelos buscadores de Deus de todas as crenças, durante milénios. Onde estaria então a novidade do Evangelho? Precisamente no acréscimo, que se torna totalidade, de um segundo mandamento, que é semelhante ao primeiro, que incarna o primeiro… O génio do cristianismo: amarás o homem é semelhante a amarás Deus. O próximo é semelhante a Deus. O próximo tem rosto e voz, fome de amor e beleza, semelhante a Deus. O céu e a terra não se opõem, abraçam-se.



Mas quem é o meu próximo? Perguntar-lhe-á outro médico. Há uma resposta que me fez crescer o coração, a de Gandhi: “o meu próximo é tudo o que vive comigo na terra”, a natureza, a água, o ar, as plantas, os animais. Ama, pois, a terra como a ti mesmo, ama-a como Deus a ama. Viver é coexistir, existir é coexistir. Não para obedecer a mandamentos ou celebrar liturgias, mas simplesmente, maravilhosamente, alegremente: para amar.



Há um aspeto interessante: Jesus cita o Deuteronómio, para responder ao escriba… mas não o cita textualmente… faz um acrescento – com toda a tua alma – dizendo-nos para sermos razoáveis no ato de fé, para cultivarmos o estudo, o aprofundamento das coisas de Deus. A fé sem razão é escriturística, fideísmo, superstição, devocionismo grosseiro. Mais… continua a citar… ajuntando outra página da Escritura… a do amor ao próximo…



Com este aditamento, Jesus quer evitar cair numa tentação muito difundida, tanto naquela época como atualmente, ou seja, a de que se pode amar a divindade de forma abrangente, através de cultos, rituais, sacrifícios, orações como um fim em si mesmo. Atualmente, inclusivamente, de costas viradas para as pessoas para deixar de as ver… para estarmo “só” para Deus…



É certo que Deus deve ser amado com todo o nosso ser, mas a modalidade é o amor aos outros! É este o mandamento: o amor de Deus invertido no amor do próximo. Aqueles que pensavam que o amor à divindade se esgotava num comércio de devoção com ela, Jesus tinha acabado de os expulsar do templo, chamando-lhes ladrões (cf. Mc 11,17).



A novidade do cristianismo é esta: o único caminho para Deus é através dos irmãos. E o Jesus de Marcos acaba por dizer: “não há mandamento (um) maior do que estes”, dizendo que o mandamento é único.https://humbertins.wordpress.com/2024/11/03/as-duas-faces-da-mesma-moeda/#_ftn2




No final, o escriba cede e elogia Jesus, fazendo uma passagem formidável em relação à religião comum: “O amor aos irmãos vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (v. 33), considerados então o fundamento da religião, a religião exterior e comercial, destinada apenas a extorquir da divindade um retorno pessoal com práticas devocionais.



A religião não se resolve numa relação com o Alto, é preciso ir ao encontro do outro, cuidar dos irmãos. Afinal, o Escriba conhece muito bem a Escritura, de facto cita duas passagens dela:



“Praticar a justiça e a equidade para o Senhor vale mais do que um sacrifício” (Pr 21,3)







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 101 Histórias Zen (Adelphi)



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 Mateus (22,39) dirá que “o segundo é semelhante a este (o Shemah); Lucas chega mesmo a fundir os dois preceitos (10,27). Em João, Jesus vai ainda mais longe: “Dou-vos um (único) mandamento novo: que vos ameis uns aos outros” (13,34).

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