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 Que Nunca se Verguem

Quando era uma jovem adulta, talvez há 20 anos, dei aulas num bairro social. Foi uma experiência inesquecível, que devo dizer me transformou. Eu tinha crescido num bairro acolhedor, onde ainda vivo, numa casa linda, quando acordávamos de manhã a minha mãe estava, e está sempre que lá vou, na cozinha, com vista para o mar, a fazer-nos um pequeno almoço nórdico, a ouvir a Antena 2 e sempre doce e com sentido de humor. Assim, começava o nosso dia.



Quando cheguei ao bairro “social” foi como chegar ao fim do mundo. Feio, paredes sem cor, não havia uma árvore, os bancos partidos, o sol não brilhava nas ruas, os prédios tapam-se uns aos outros, as portas dos prédios não tinham vidros.



O bairro era desolador. Mal cheguei caiu-me um botão e uma das alunas perguntou-me, desafiante, se eu estava a despir-me. Era jovem e tinha já filhos, engravidaria outra vez nesse ano. Circulavam carros a guinchar, em corrida; cães perigosos, não são só os donos que são perigosos, eles também, são cães-armas, junto de crianças que brincavam na rua, também elas sem nenhum tipo de supervisão. A polícia passava e via os cães sem açaime junto de bebés de dois anos e nada dizia, as mães morriam de medo da polícia, dos cães e dos donos dos cães. Os taxistas recusavam-se a ir lá. Os motoristas tinham desistido de cobrar bilhete.



Rapidamente percebi que a droga que era consumida nas festas da linha de Cascais e dos CEOs das empresas tinha naqueles jovens – era preciso parir muitos – o “aviãozinho”, ou seja, eram eles que estavam na parte mais baixa da cadeira produtiva do tráfico de droga, carne barata para canhão, indo de quando em quando parar à prisão, de onde vinham em geral mais astutos em matéria de crime comum.



A população era um autêntico exército industrial de reserva – trabalhavam eles na construção civil, nos supermercados, a carregar móveis ou entregas, e elas a limpar escritórios, e WCs públicos – deixados nojentos por pessoas bem educadas -, mulheres acordadas às 4 da manhã, regressadas, à noite a casa, para ir limpar casas bonitas. Dos meus alunos, todos adultos, havia portugueses negros e brancos, imigrantes do Brasil, de países africanos, e ainda de etnia cigana. Todos se odiavam uns aos outros. Os ciganos gritavam “pretos” , os negros gritavam “ciganos” e os portugueses brancos gritavam “ciganos e pretos”. Nenhum sabia ler com proficiência, tinham literacia mínima, e todos eram adultos. Guterres tinha tido a ideia da escola dentro do bairro, pelo que vários jovens nunca saíam do bairro-gueto a não ser para ir à praia no verão, onde os surfistas brancos de olhos azul os tratavam por “pretos do cR%”.



E eu? Eu tinha para dar umas delirantes matérias com nomes pomposos onde cabiam as palavras cidadania, cultura, tolerância e democracia.



Bem, olhei para aquele cenário e pensei, o que vou fazer?



Cidadania? Ensinei, a partir dos preços de uma mercearia, a teoria do valor trabalho, crises no capitalismo. Como o Banco Mundial criou o rendimento mínimo para evitar revoltas. Urbanismo básico: porque há um bairro social ao lado de centros comerciais e porque aí só se paga o salário mínimo, com 6 dias de trabalho.



Democracia? Expliquei que o desemprego era a outra face da precariedade, e que não existia antes do capitalismo por norma, mas no capitalismo era a norma. Se não temos trabalho com direitos não há democracia. Exército industrial de reserva (superpopulação sobrante, só recrutada para trabalhos duros em épocas altas. Lemos um contrato de trabalho, que uma delas tinha – recordo o valor, 2 euros e meio à hora, limpezas. Bom exemplo para tratar da matéria “direitos humanos”.



Tolerância? É verbo que não uso, paternalista. Gosto de Igualdade, respeito, liberdade, escutar e ouvir.



E cultura. Rapidamente me apercebi que nenhum deles conhecia Lisboa e estávamos a 15 minutos de carro do centro de Lisboa. Os que conheciam tinham ido à Loja do Cidadão. Liguei para a Câmara, quero um autocarro para levar os meus alunos a museus, disseram-me que não há. Perguntei-lhes se conseguíamos ir pagando, lá nos organizámos, de comboio e aí fomos. Lembro-me da primeira visita ao Castelo de São Jorge e do Sr. J. ter chorado, com quase 50 anos, quando viu aquela vista “Professora, obrigada, que coisa bonita”. Aí também eu, educada na linha de Cascais, cedi, para sempre. Desatei a chorar também. E ainda choro quando conto esta história.



Como choro quando recordo o mais bem educado aluno que tive em toda a vida, os outros que me perdoem, cabo verdiano, com marcas de violência física no corpo, de tortura, que vinha para as aulas às 18 horas, aprender a ler, escrevia tudo, perguntava tímido as dúvidas com uma delicadeza impar, e tinha acordado às 5 da manhã, 6 dias por semana, para ser servente de pedreiro. E morria de medo dos traficantes de droga e da polícia. E a Dona C. que ia todos os dias às 4 e meia da manhã limpar escritórios. E a Dona M. totalmente analfabeta, com sete filhos, nenhum a frequentar um colégio da Opus Dei, mas uma escola TEIP onde havia um currículo “adaptado” esvaziado de conhecimento cientifico, cheio de cidadania e tolerância. Afinal os sete filhos deviam ir para a construção civil e limpar casas de banho.



No bairro havia uma ONG meio cristã que lhes distribuía, como complemente dos salários mínimos, comida, em geral massas fora de prazo, e conservas. E assistentes sociais que os ameaçavam constantemente com palavras fofas “porta-te bem”. E claro, a polícia, que eram para ali mandados quase por sadismo como praxe (como alguém me contou por estes dias), e que entravam pelo bairro a dentro, também com medo, e como eu só tinha visto nas bandas desenhadas do Lucky Luke. E o Presidente da Câmara, de direita, que era recebido na semana de eleições, sem medo, era o único dia que lá ia, com gente que se vergava a ele, baixando as costas, implorando qualquer necessidade básica e tirava fotografias. Agora deve ir lá fazer filmes para o Instagram, e prepara-se para dividir o pelouro entre ele e o Chega.



Ao mesmo tempo, noutro bairro, não longe dali, um grupo de jovens negros tentava organizar um jornal político onde falava das más condições de trabalho e vida e foram ameaçados, pelos traficantes de droga, e lhe apreenderam os panfletos.



Rapidamente descobri que os bairros sociais eram feitos para ser assim. Ninguém se enganou no Estado. Devem ser feios porque as pessoas não devem aprender a beleza; devem ser ameaçadores; deve viver-se sobre o medo, dos traficantes e do Estado, da Igreja e da assistente social; devem ter muitos filhos, porque “há falta de mão de obra”. Eles lavam de madrugada o escritório onde trabalhamos de manhã, constroem casas, junto ao mar, onde nunca podem viver; carregam o supermercado de comida, de qualidade e dentro do prazo.



Fomos a museus e passeios nesse ano, continuei a ensinar matérias perigosas, ou seja, conhecimento, é assim que se formam cidadãos. Quando me despedi, conversámos, eles, na sua maioria, disseram-me que eu os “respeitava” e tinha “ensinado coisas úteis” e os “tratava bem, sem mentiras”. Não consegui que a maioria aprendessem a ler, nem coloquei vidros nas janelas, pedi-lhes desculpa por isso. Não mudei nada a vida deles, eles mudaram a minha. E de repente todos chorámos na despedida, homens e mulheres, professora e alunos, confrontados com a nossa tristeza, mas sobretudo com a nossa humanidade comum, ali, no fim do mundo.



Que lutem, lutem sempre e nunca se verguem. Assim se fazem cidadãos. Na luta por direitos.

https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2024/10/24/que-nunca-se-verguem/