Muito bem, servo de Deus <img width="576" height="864" src="https://actualidadereligiosa.pt/wp-content/uploads/2024/10/Anthony-Esolen.jpg" alt="">Anthony Esolen Existe uma cena no Paraíso Perdido, de John Milton, que me encoraja no combate às más ideias e as irrealidades que assumem ou ajudam a espalhar, qual contágio. O Serafim Abdiel, cujo nome significa “Servo de Deus”, refuta Satanás em cada ponto que o tentador avança para persuadir os seus seguidores, que está a arregimentar para se revoltarem contra o Filho de Deus. Abdiel fá-lo com uma combinação de argumentação precisa e de zelo apaixonado. Mas Satanás rejeita a verdade, gozando tanto com ela como com o seu mensageiro. Em vez de concordar com um ponto sequer, compromete-se cada vez mais com a falsidade, indo ao ponto de negar que seja sequer uma criatura. “Não conhecemos época nenhuma em que não existíamos como hoje”, gaba-se. “Ninguém antes de nós não conhecemos, quando chegou a sempiterna massa.” Depois diz a Abdiel para ir entregar a notícia ao Filho de Deus, de que a guerra estalou, e termina com uma ameaça: “Vai-te, foge, antes que a hórrida ruína te obste a fuga”. Mas Abdiel não se acobarda. Está rodeado de milhares e milhares de rebeldes, de ouvidos moucos às suas palavras e desdenhosos do seu zelo, que julgam “sem-razão, disparate, desatino”. Mas uma só alma devota da verdade é mais forte que milhares de mentirosos e tolos. Os rebeldes ratificaram o seu divórcio da verdade e agora, diz Abdiel a Satanás, “outros decretos já sem apelação se te fulminam”. E abandona o campo, desprezado por todos: Desta sorte Abdiel se desagrava. Entre tantos infiéis é fiel só ele; Cercado por inúmeros falsários, Firme, arrogante, intrépido, inconcusso, Não se seduz, não treme, não se abala; Nem torva multidão, nem tanto exemplo, Separá-lo puderam da verdade Ou mudar-lhe o constante pensamento; Ele, posto que só, guardou sem mancha Sua lealdade, seu amor, seu zelo. Eis foge deles, indo largo espaço Entre mofas e ultrajes dos perjuros; Mas ele superior afronta o p’rigo E com desprezo audaz retorque insultos, Virando costas às soberbas torres A destruição já pronta destinadas Não há dúvida de que Milton pensava em si mesmo como um Abdiel, tão profundamente comprometido com aquilo que acreditava ser a verdade teológica que não viu forma de se tornar membro de qualquer igreja. É este individualismo que o marca como o primeiro dos modernos, embora noutros sentidos seja mais correcto olhá-lo como o último homem do mundo antigo, da Idade Média e do Renascimento. Mas deixemos de parte esse deslize biográfico, que não diz respeito ao drama desta cena, uma vez que Abdiel não está a partir para estar sozinho, nem está a defender uma doutrina particular da sua criação. Ele deixa o campo de Satanás para se juntar ao campo do Deus eterno, e é nesse sentido que o leitor católico do nosso tempo pode ver em Abdiel o modelo de uma devoção mais profunda à Igreja como repositório da verdade. Mas como é que nos comprometemos com a verdade? Temos as Escrituras, o Catecismo e o Magistério da Igreja desde o seu início. Mas nem sempre é claro como estes ensinamentos se aplicam às actuais polémicas, as pessoas discutem o seu alcance e o seu significado e as palavras humanas são incapazes de atingir as realidades últimas. <img width="672" height="663" src="https://actualidadereligiosa.pt/wp-content/uploads/2024/10/Bosch-faling-angels.jpeg" alt=""> Assim, vemo-nos frequentemente no meio de uma confusão que não é inteiramente da nossa lavoura. A pressão psicológica para acompanhar aqueles que nos são mais próximos é intensa, e esse acompanhamento inclui tanto concordar com a proposição como tomar parte numa acção, seja de forma activa ou permissiva. No homem a acção e a visão são inextricáveis: agimos de acordo com o que vemos, ou pensamos ver, e vemos, ou pensamos que vemos, de acordo com o que fazemos. Não temos qualquer compreensão da realidade fora das ideias, e não temos ideias que não sejam afectadas por aquilo que fazemos. Sendo assim, podemos compreender que o pecado e a falsidade estão interligados, e a partir daí podemos concluir que existem vários sinais fiáveis para nos conduzir para evitar cair nas areias movediças. As conclusões a que chego sozinho são provavelmente falsas, porque parciais em ambos os sentidos da palavra: Só vejo em parte, e sou parcial às minhas ideias e aos actos que elas justificarão. Aquilo que depende das paixões do momento é provavelmente falso, porque a verdade é eterna e não varia consoante o calendário. Aquilo que segue o seu próprio caminho, excluindo ou ignorando outras considerações, é provavelmente falso, porque as verdades iluminam-se e edificam-se, em vez de obfuscar em lusco-fusco ou na escuridão. E, claro, tudo o que conduz ao absurdo ou à contradição é certamente falso. A falta de rigor com a verdade é, na minha opinião, o contrário daquilo que Jesus diz sobre o Reino de Deus. O comerciante de pérolas preciosas encontra aquela pérola de grande preço e vende tudo o que tem para a adquirir. Ele não se contenta com uma pedra brilhante que não é pérola nem usará, presumo, a pérola como um pisa-papéis ou batente para uma porta. É ainda uma forma de desprezar a obra de Cristo e o ensinamento dos apóstolos. “Outrora éreis trevas”, diz São Paulo à Igreja de Éfeso, “mas agora sois luz no Senhor.” São Pedro encoraja cada crente a louvar a Deus: “que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. Sozinhos estamos todos nas trevas. Quem tenta ver Deus com a sua própria luz não verá sequer a si mesmo, mas um ídolo de si. Mas se acolher a luz como foi revelada por Deus, e não segundo os critérios do seu tempo, começará a raciocinar bem e poderá conhecer-se a si mesmo. E então, enquanto o mundo enlouquece, como tende a fazer de tempos a tempos, poderá fazer como Abdiel e terá a certeza de que não estará sozinho, independentemente do que diz o mundo e os seus orgulhosos príncipes. Anthony Esolen é professor na Thales College, tradutor e autor. Entre os seus livros incluem-se <a href="http://amzn.to/2mSpj9S" rel="nofollow">Out of the Ashes: Rebuilding American Culture</a>, https://amzn.to/2SvVnNi . (Publicado pela primeira vez no Domingo, 13 de Outubro de 2024 em https://www.thecatholicthing.org/2024/10/13/well-done-servant-of-god/ ) © 2024 The Catholic Thing. Direitos reservados. Para os direitos de reprodução contacte: <a href="mailto:info@frinstitute.org" rel="nofollow">info@frinstitute.org</a> The Catholic Thing é um fórum de opinião católica inteligente. As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. <a href="http://actualidadereligiosa.blogspot.com/2012/01/catholic-thing-chega-ao-mundo-lusofono.html" rel="nofollow">Este artigo aparece publicado em Actualidade Religiosa com o consentimento de The Catholic Thing</a>. O conteúdo https://actualidadereligiosa.pt/blog/2024/10/16/muito-bem-servo-de-deus/ . https://actualidadereligiosa.pt/blog/2024/10/16/muito-bem-servo-de-deus/