Atirar a Matar? Penso sempre num dono de um supermercado, de uma grande empresa de construção civil, que paga o ordenado mínimo e está na TV a ver trabalhadores negros com o salário mínimo de um lado, seus trabalhadores, polícias, com pouco mais do mínimo, do outro. E manda vir um whisky, para acabar de ver a cena. O sofá de couro, e uma luz suave, indirecta. Na TV grita-se, e as imagens movem-se como peças de xadrez. Ando há uns anos a defender três ideias. São conhecidas dos historiadores, agora são a realidade dia a dia. O fascismo não é um Partido, é uma milícia. Não são, como dizem os media, “partidos de extrema direita”, são, historicamente, associações criminosas, eleitas. Temos um século de estudos do fascismo na história. Segunda ideia, não crescem como cogumelos, com propaganda, crescem no Estado. Terceira, derrota-se não no Estado, mas cívica e socialmente. Quarta, é uma pergunta, sincera, o que é hoje a polícia portuguesa? A segunda ideia. No sul da Europa estes partidos-milícias não têm base social como nos países ricos, na pequena burguesia. Nascem do Estado e dos media, nascem e crescem nas forças armadas e polícias, e são apoiados pelos media, onde se constroem como estruturas eleitorais que manipulam os sentimentos mais desesperados de camadas das populações fartas de retrocesso de vida e trabalho. O objectivo não é só meter medo às populações mais empobrecidas, mas a todos os trabalhadores e às suas greves. O fascismo é uma forma de governo das classes dominantes para o fim do pacto social. É a força contra todos os que vivem do trabalho, é a guerra social. E sobretudo contra os trabalhadores organizados. O seu maior temor não são “desacatos” na periferia, as classes dirigentes não andam de autocarro nem sabem onde fica a Amadora. O seu medo são as greves na cidade, que param o lucro das suas empresas. A sua maior força, destas milícias-partidos, é “atirar a matar”, negros, e depois, grevistas. Temos 100 anos de conhecimento histórico de como estas milícias se organizam. Foi assim na Itália nos anos 20, e em dezenas de países nos anos 30 e 60. A terceira ideia. Não se derrota esta hidra com petições e queixas. Parabéns aos que, no PS e outros partidos, apresentaram a queixa-crime, que eu assinei. Mas o fascismo derrota-se com movimentos cívicos de massas, a partir de greves e manifestações de rua. Nunca, em momento algum da história, o fascismo foi derrotado sem movimentos sociais. O PS, se quer derrotar o fascismo, chame, como Partido, apoio à manifestação de hoje pela justiça e contra a repressão. Quarta e última ideia. Que é mais uma pergunta. Não sei o que é hoje a polícia portuguesa, conheci gente muito decente na polícia, mas em 2021 conheci um polícia que estava a estudar para ser professor porque o “clima de medo interno” era “insuportável”, referindo-se ao Movimento Zero, segundo jornais de direita, como o Expresso,” movimento ligado ao Chega que tomou conta dos protestos nas forças armadas”. Troquei, não uma, mas várias conversas com polícias sobre as suas deploráveis condições de trabalho, com quem me solidarizei, até 2019, quando surgiu o Movimento Zero e André Ventura, com um deputado, era levado ao colo pelos jornalistas “isentos”. Nunca vi um comunicado dos jornalistas condenando a legalização do Chega e denunciando a náusea que é serem obrigados a entrevistar tal organização. O Estado legalizou o Chega, mas os jornalistas não são o Estado. Só há jornalismo, assim nasceu essa profissão, se é do público, contra as decisões do Estado e do Mercado. Vi polícias anti-racistas serem publicamente arrasados nas páginas dos jornais por outros polícias. Numa manifestação de professores um polícia chamou-me para me dizer que não podia pronunciar-se mas concordava com tudo o que defendíamos. Outro, numa esquadra, apertou-me a mão e disse-me que se sentia representado pela defesa que fiz dos direitos de quem trabalha. Sorri-lhe, com sinceridade, feliz, pensando que há esperança nesse sector. Ainda é assim? Ainda existem? Quando são os relatórios oficiais a dizer que a extrema-direita está dentro da polícia, estamos em perigo, porque defendem “atirar a matar”, têm armas. Nós não temos nem as sabemos usar, eu pessoalmente não quero ter nem saber usar. Nem vou aprender artes marciais. Por isso, quando eu ou qualquer cidadão vamos a uma esquadra pedir ajuda, ficamos a pensar: a pessoa que nos atende subscreve declarações análogas a uma milícia partidária fascista? Esta pessoa vai “atirar a matar”? Quando um bêbado lhe chamar nomes, um carro não parar, um jovem lhe atirar uma pedra, e outro agarrar nele e bater-lhe, vai “atirar a matar”? Quem são estas pessoas que hoje estão na polícia e têm armas na mão? Gostava de ter visto movimentos de polícias, sindicatos, a responder às declarações do Chega que lhes pediram para eles atirarem a matar, fazendo dos polícias carne para canhão, também. Não vi. Oxalá veja-os hoje na manifestação cívica contra “atirar a matar”. E se tiverem medo, que o percam, anda toda a gente a escudar-se no “medo” para não agir, professores, médicos, policias, a coragem desapareceu como valor? O medo não se combate com ioga ou psicólogo, nem pode ser uma desculpa para a resignação. Que se organizem, que defendam uma polícia justa, decente, desculpem se estou a ser naife. Os polícias estão entre as profissões com mais problemas de saúde mental, e más condições de trabalho, “atirar a matar” não só não vai resolver estes problemas como vai agigantá-los. O Sr. do whisky, que nunca se mete em política, levanta-se, tem um jantar. Vai estar lá o Presidente da Câmara, dois deputados e um chefe de gabinete, e o assessor de comunicação do CEO. A mulher chama-o, “Querido, vamos chegar atrasados”. A empregada “preta, mas honesta e asseada” espera que eles saiam, e levanta o copo, com o gelo ainda a boiar. Um dia só me restará a dramaturgia, que ela possa iluminar o caminho para sair desta loucura, em que a realidade e o medo nos colocaram. https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2024/10/26/atirar-a-matar/