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 Um artigo de 2020:  Liberdade para concordar
   
A linguagem tem um papel que ultrapassa as funções descritivas e alcança as camadas psicológicas mais profundas, tanto pela força persuasiva da repetição, quanto pela capacidade de influir significados a signos dispersos armazenados na memória.
Quando a linguagem decai, além da confusão interpretativa que degenera a comunicação entre as pessoas, o imaginário passa a ser preenchido por símbolos ambíguos, abstratos e voláteis, o que pouco a pouco incapacita a tomada de decisões e transforma os indivíduos em seres inseguros e dependentes. 
Esse processo que decorre da degradação da linguagem interessa a quem pretende manter e expandir o poder por meio da manipulação das mentalidades. Como as palavras só passam a fazer sentido dentro de um conjunto de pressupostos, quem detém a prerrogativa de impor as bases da discussão tende a controlar o debate público – mesmo que isso não signifique o controle total sobre o fluxo dos acontecimentos.
Com o objetivo de conquistar a hegemonia cultural permanente, grupos de pressão investem contra a precisão e a naturalidade da língua para dar a ela um caráter subjetivo que permita distorções pontuais, de forma a favorecer interesses políticos, econômicos ou ideológicos. 
Toda manipulação começa na linguagem, e essa regra se desdobra em outra: todo aparelhamento da linguagem depende da sua relativização. 
O relativismo, que tem a capacidade de destruir até mesmo as distinções entre verdade e mentira, também torna a linguagem vazia de conteúdo, inicialmente, e disforme, com o passar do tempo. E ao subtrair da linguagem a precisão descritiva e a contextualização – impossíveis em um ambiente subjetivo e relativista – ela vira uma arma de guerra cultural ou, na melhor das hipóteses, um adereço, uma perfumaria. 
Como em uma guerra não se desperdiça arma alguma, a instrumentalização da linguagem é usada em tempo integral, e de forma a atingir todas as camadas da sociedade e todos os aspectos da vida das pessoas, mas só fica evidente quando surge uma oportunidade de utilizar os efeitos das inserções no imaginário para executar o que há tempos vinha sendo planejado. 
Em momentos de crise esse processo fica mais visível. Por causar transformação, a crise sempre tem um aspecto de oportunidade. Parece frase de coach, mas na prática as crises são responsáveis por grandes mudanças na sociedade, e talvez seja por isso que, em chinês, a palavra crise é composta de dois caracteres: perigo e oportunidade – nesse caso podemos entender “perigo” para o gado, “oportunidade” para seus condutores. 
A crise que atravessamos agora, que começou bem antes da Covid-19 e tem raízes na degeneração cultural e moral fomentada nas últimas décadas, serve de exemplo para demonstrar como a manipulação da linguagem pode aproveitar a instabilidade para mostrar seus reais efeitos. Desde o início da pandemia ficou claro, para quem pensa um pouco, que a crise estava (e continua) servindo para avançar uma agenda totalitária. Nem é preciso discutir a doença ou entrar no mérito dos culpados e do eventual dolo de seus atos para perceber que junto com o Corona veio à tona o pensamento totalitário enraizado na mente de pequenos burocratas, de tiranetes regionais e de figurões da política, da academia e da imprensa.
Não há exemplo melhor dos efeitos nocivos da relativização da linguagem do que os recentes episódios de perseguição a jornalistas independentes. Mesmo diante de inquéritos inconstitucionais, quebra de sigilo de fonte e outros absurdos legais, boa parte da “classe pensante” resolveu relativizar os direitos naturais e a própria noção de “liberdade”.
Seja por interesse econômico pontual, seja por divergência política ou ideológica, parlamentares, intelectuais e jornalistas da grande mídia tentam construir um novo conceito de liberdade. Querem impetrar um significado diferente à palavra, minimizando e distorcendo a sua essência e mantendo apenas os acidentes mais periféricos.  
Segundo esses seres angelicais, liberdade é um conjunto de regras que uma elite superior e inalcançável define, e os simples mortais devem seguir a sua vida dentro desse espaço delimitado. Essa aristocracia autointitulada pretende abandonar toda e qualquer referência à liberdade como direito natural e inviolável. 
Se o povo aceitar essa nova interpretação do que vem a ser liberdade, em breve esse direito será esmagado e esquecido, e em seu lugar teremos um espaço cada vez mais restrito para manifestações contrárias ou minimamente diferentes do discurso oficial. Estaremos inaugurando a era da liberdade consentida, onde ela só poderá ser exercida se for pra concordar com o establishment.

  
Alexandre Costa (Vide Editorial, 2020)